A Relação Entre Ser Feliz e dar Cabo da Própria Sujeira

Simplicidade é a complexidade resolvida” (Constantin Brancusi)

Ontem assisti ao “Que Horas Ela Volta” e no lugar de ter a impressão de ser mais um filme que mostra o Brasil de dentro para fora, encontrei nesse ensaio sociológico, o Brasil mostrado de fora pra dentro. Se os Tropas de Elites I e II, Cidade de Deus, Central do Brasil, Bicho de Sete Cabeças, Abril Despedaçado, foram janelas para uma realidade que eu sabia que existia, mas cujos pormenores eu desconhecia, a cria de Ana Muylaerte teve o efeito contrário. Foi um espelho. Daqueles limpos com vidrex e que mostram, com precisão, a imagem de sempre. O reflexo que estamos carecas de conhecer e – quase sempre – temos resistência em confrontar.

Há cinco anos atrás li dois artigos que mexeram comigo. Daqueles que incomodam e que nos botam para pensar. Um escrito pelo Daniel Duclos e o outro escrito pela Adriana Setti. Ambos brasileiros residentes da Europa. Ele em Amsterdã, ela em Barcelona. Cidades e respectivos estilos de vida igualmente incríveis. Ambos defensores de hábitos mais simples, enxutos, espartanos até, independentes e… libertadores.

Naquela época eu achava essas idéias apenas legais. Apoiava. Admirava os que tinham essa visão de mundo, mas pensava “ok, bacana, mas isso não é para mim“. Ainda não era. Mesmo. Tinha acabado de me mudar para uma cidade nova, mas não estava muito contente com a minha vida pessoal e profissional, e o que eu fazia? Gastava. Achava que eu merecia tudo. E, confundia conforto com bem estar. Satisfação pessoal com o prazer de ter.

Anos mais tarde fui morar fora. Sozinha. Por questões puramente econômicas ter uma diarista sequer chegou a ser considerado. Então viver num lugar pequeno, funcional e com poucos móveis era a alternativa viável para que eu arrumasse minha própria bagunça. Sem vergonha admito, aprendi a lavar e passar roupa, cozinhar e… limpar banheiro aos 28 anos de idade. E, não morri. No máximo, senti-me meio idiota quando liguei para minha mãe do supermercado, diretamente da sessão de produtos de limpeza, para saber o que tinha que comprar. Passei pouco mais de um ano carregando toda a minha vida em duas malas, num apartamentico de poucos metros quadrados. Minimamente minimalista.

Pela primeira vez na minha existência cuidei na mais ampla acepção da palavra da minha própria vida. Das minhas roupas, da minha comida, do meu lixo, da minha bagunça. Cuidei, enfim, de mim. E essa foi uma das experiências mais interessantes pelas quais passei. Ter muito significava perder tempo e gastar mais energia e dinheiro com coisas. Óbvio que às vezes enxia o saco. Eu tava beeeeem longe de ser uma Cinderella que tratava dos afazeres domésticos cantarolando. No máximo botava uma música alta e mandava umas cervejinhas pra dentro, pra ver se o tempo passava mais rápido. No mais das vezes tinha preguiça. Outras tinha nojo. Nojo do banheiro que só eu usava; e dos restos da louça cuja comida eu havia comprado e preparado (?). Procrastinava.  Dava um gato e fazia as coisas meia boca, mas como eu era a única responsável e interessada em cuidar do meu próprio subproduto, não tinha para onde fugir. Ou pelo menos, não dava para fugir por muito tempo. Lembrava muito de estar sentindo na pele um pouco daquilo que os outros brasileiros da Europa descreveram ao tecer suas considerações. Não tinha orgulho de me olhar no espelho e perceber-me mimada, fútil e fresca. Mudar velhos hábitos era difícil, mas resistir tampouco era uma opção.

Simplicidade

O filme de ontem, estrelado pela Regina Casé, trouxe à tona memórias afetivas. Da Maria, Ana, Iracema, Lu – como eu, Ana Maria, Cilene, Lena. Da Lourdes, da Cida, da Vânia, da Neide, da Antonia. De pessoas incríveis e dedicadas que passaram pela minha vida, pela vida da minha família, pela vida da família dos meus amigos. E também me lembrou de muitos conceitos e preconceitos. Dos outros, da sociedade. Mas, sobretudo, meus.

Não me orgulho de todas as lembranças que tive. Muitas vezes no meio do filme sentia vergonha alheia – e própria – ao fazer analogias com a minha própria vida. É doído ter que reconhecer que a obra de Gilberto Freire, escrita antes da metade do século passado continua tão viva e atual.

Preferências políticas à parte, o filme mostra muito bem esse Brasil da crise. O Brasil da crise política, econômica, mas acima de tudo, da crise de identidade. Desse Brasil que finge que insere pessoas através de um consumo desqualificado; que é cordial dentro de limites muito bem traçados; que reclama da implantação regime de cotas – mas que na mesa de bar acha bonito dizer que a educação é um lixo; que é, enfim, politicamente correto até que seu umbigo (ou do filho, da mãe e do pai, do amigo) não esteja na reta. Que insiste em fingir que a Casa-Grande e a Senzala não existem mais, mas que reclama da dificuldade que é hoje em dia de achar empregados comprometidos como antigamente. Que tem facilidade em apontar a sujeira, mas que não tem coragem de meter o dedo na ferida.

Se olhar no espelho, seja como indivíduo seja como nação, incomoda e significa entrar em contato com nossas próprias fraquezas e discursos contraditórios. Olhar no espelho e acolher aquilo que se é também liberta. No meu microcosmos de um ano de sobrevivência em um país ultradesenvolvido e civilizado eu percebi que dá muito bem pra bem viver com “pouco”. Sem precisar de alguém para fazer o aquilo que eu não gosto. Usando transporte público. Compartilhando. É muito difícil manter todos os hábitos lá adquiridos aqui, pelos motivos (ou desculpas) que todos conhecem, mas agora eu sei que é possível.

Mais do que possível eu descobri que é do caramba ser simples sem ser simplista; dividir oportunidades e espaços sem ser assistencialista; usufruir sem precisar possuir; ter controle das situações sem precisar mandar nos outros; sentir-se bem com o que se tem sem ficar se comparando. Gostei até não poder demais dessa sensação de leveza, liberdade, simplicidade, e empoderamento que só uma vida com mais responsabilidade e autodisciplina, e menos dependência e apego às coisas e aos outros é capaz de proporcionar.

( Àqueles que se interessarem em experimentar ainda que seja “um dia” a experiência de bem viver com menos, eu recomendo dar uma olhada nesses blogs: 20L Life, Be More With Less, The other Side of Complexity e Zen Presence)

3 comentários sobre “A Relação Entre Ser Feliz e dar Cabo da Própria Sujeira

  1. ivistroy.ru disse:

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