♔ O Leite Derramado

“Não passam de traidoras as nossas dúvidas, que nos privam, por vezes, do que seria nosso se não tivéssemos o receio de tentá-lo.”

(Medida Por Medida, William Shakespeare)

A incontestável sabedoria contida nos ditos populares sempre me provocou. Se por um lado me irrita até as tampas receber análises e comentários em meia dúzia de palavras quando há um problema a consumir-me a alma; por outro, sinto uma satisfação aguda e muito orgulho do meu poder de síntese quando destrincho um problema e aponto possíveis causas e soluções em poucas palavras.

Não-adianta-chorar-pelo-leite-derramado. Seis palavras que traduzem a importância do desprendimento. A ode ao desapego. Um só espaço não pode abrigar dois corpos. Planos de um futuro promissor não podem ser estudados por olhos cheios d’água, nem sentidos por um coração que bate por um amor já desgastado, tampouco raciocinados por uma mente que ocupa suas sinapses com o que já foi. 

Desligar-se é preciso. Mas, mais precisamente, como saber o momento certo de partir? Como saber a diferença entre jogar-pérolas-aos-porcos e precipitar-se em cortar-a-pata-do-burro-por-um-único-coice? 

Como grande parte das questões que nos assombram as idéias, essa pergunta não possui resposta exata. Mas na economia mora a teoria que racionaliza aquilo que se deve fazer quando o caldo entorna. Na ciência que estuda os desejos infinitos e os meios finitos, o leite derramado é também conhecido por custos irrecuperáveis. Aqueles recursos que uma vez investidos já não podem mais ser regatados.

No racional por trás dessa teoria reside a idéia de que o tempo, energia e dinheiro investidos não poderão ser recuperados. Independentemente do que for feito, você não tem como receber de volta. Assim, como não faz sentido acender-vela-boa-pra-mau-defunto, é irracional continuar investindo em um projeto com o único objetivo de recuperar recursos perdidos.

Mesmo assim, a gente insiste. Por que? A teoria econômica também explica, o ser humano tem mais aversão a perder coisas do que satisfação em ganhá-las. Neste cenário, as oportunidades de realização são ofuscadas pelo medo das ameaças. A aversão à perda explica o medo de agir que nos impede de trocar-o-certo-pelo-duvidoso.

Mas como jacaré-que-fica-parado-vira-bolsa, é preciso sair da inércia. Ter consciência de que é possível driblar as armadilhas de se prender a um projeto fadado ao fracasso e, saber de antemão que o ser humano tem uma inclinação irracional para a resistência em assumir riscos pode ajudar a superar ambas as barreiras psicológicas à tomada de decisões mais coerentes. 

O primeiro passo para evitar a armadilha do custo afundado é saber identificá-lo.

Você compra um par de sapatos caríssimos, mas seus pés não suportam caber dentro deles por mais de uma hora de uso. Você insistiria em usá-los só porque o custo para adquiri-los foi alto?

Você pede um prato no mais novo e badalado restaurante mas logo na primeira garfada, você percebe que a gororoba gourmet não vai cair bem. Você interrompe a tortura de comer pensando nas possíveis consequências fisiológicas ou prossegue mesmo assim?

Seu sonho sempre foi casar, você namora há anos e finalmente aconteceu o pedido de noivado, mas vocês mudaram e há algum tempo você percebe que seus valores, anseios e vontades já não coincidem mais. Ambos querem fazer uma viagem, mas um quer desbravar as praias e as loucuras submarinas da Indonésia enquanto o outro precisa se render às orgias de luzes, cores e consumo de Vegas. Você continua sonhando com o milagre da transformação da personalidade humana ou termina tudo para tornar-se disponível à alguém mais compatível com a pessoa que se tornou?

Você já é formado, tem duas especializações, mestrado fora e acaba de ser promovido, mas passa a semana toda ansiando pela chegada do final de semana e tortura-se aos domingos porque no dia seguinte começará tudo de novo. Você pensa que é imperdoável desperdiçar todos os anos de estudo e permanece na carreira insatisfatória, ou arrisca-se em busca de um trabalho com mais propósito?

Os exemplos são fartos e todos eles convergem para uma suposição falaciosa: você investiu tanto que parece errado abrir mão, sem nenhuma recompensa. Ninguém quer sentir-se fracassado. Entretanto, investir mais tempo e energia em algo, apenas e tão somente, no afã de minimizar prejuízos, não parece ser uma estratégia, digamos, de vencedores.

Neste cenário, uma saída pode ser isolar o custo e projetar no tempo o quanto representa o peso morto que você está carregando consigo, as sensações, frustrações, dores. Quando você tira a variável do investimento, salta aos olhos o alto preço que se paga em insistir em depositar recursos finitos em um saco-sem-fundo.

Outra saída, também extraída dos livros de economia, relaciona-se à limitação das escolhas humanos diante da finitude. Se você escolher algo, automaticamente está renunciando à outra coisa. Insistir no status quo, custa. Qual o custo da oportunidade perdida? O que quer seja que você tenha deixado de fazer para insistir no apego a um projeto com custos afundados, isso lhe custará. Não apenas energia. Não apenas seu tempo. Tampouco, apenas o seu dinheiro. Mas o valor ou prazer que você obteria se tivesse escolhido fazer outra coisa.

Qual preço você está disposto a pagar por escolher a fidelidade ao que foi em detrimento daquilo que ainda pode ser?

(♔ LAML)

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