♔ O Quê Você Quer Ser Quando Crescer?


“Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou tão feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.”

(Com Licença Poética, Adélia Prado) 


Desde muito cedo, quando me deparava com o dever de responder essa pergunta eu fazia cara de inteligente e enchia o peito sem seios para dizer: “advogada”. As questões de justiça sempre me intrigaram. Se contrariada, o isso-não-é-justo em todas as suas variações saia da minha boca como um mantra. Já novinha era famosa na família por ser persistente e conseguir tudo aquilo que queria. 

Você deve estar pensando que eu era uma menina mimada. Talvez fosse. Ou seja até hoje. Um pouco. Mas depende do que você entende por mimo. No dia 1 da minha existência, mamãe me escolheu como melhor amiga. Chorou porque nasci menina. Não queria que eu sofresse, como ela, as limitações de ser mulher. Por esse motivo, mamãe me mimou. Depositou em mim todas as convicções que ela nunca conseguiu desenvolver. Doou-me até o que não tinha. Transmitiu só para mim todos os fenótipos da determinação, da perseverança e da coragem para defender com unhas e dentes meus interesses. Mamãe guardou para mim e para mais ninguém os ensinamentos sobre resiliência, devotamento e perdão. Por fim, mamãe me amou. Incondicionalmente. Através de seus abraços e beijos, aprendi cedo que o amor é o único remédio com verdadeiro poder para curar quando a vida nos machuca. 

Escolhi fazer Direito para corrigir as injustiças, colocadas como pedras, na minha existência familiar. As pedras foram todas guardadas e ajudaram-me na construção da daquilo que sentia necessidade de me tornar. Construir-me advogada foi algo natural e parecia ser a melhor forma de consertar o que cheirava a torto e de conquistar o que parecia ser direito.

Assim foi. Adquiri o conhecimento que precisava para alcançar os objetivos que até então reputava serem compartilhados também pelo meu coração. Com o tempo passei a questionar Epicuro [1] quando não senti paz ao percorrer os caminhos jurídicos da justiça. Percebi também que não me adiantava muito ter poder de persuasão e ser obstinada, quando não conseguia encontrar propósito nas vitórias de conseguir o que queria. O gato non sense de Lewis Carrol[2] como nunca antes passou a fazer sentido. Eu não sabia para onde estava indo.

6

Foi então que uma janela de oportunidade se abriu. Ou melhor. Foi então que eu me abri para uma janela de oportunidade. Pela primeira vez na vida eu me dei ao luxo de pensar a sério como seria minha vida se eu me divorciasse irrevogavelmente da minha metade advogada. Dei a notícia da separação à mamãe, em primeira mão. Ela sequer me questionou. Parecia até já saber antes de mim que aquela decisão era a mais acertada. Sorriu quando perguntou:

– O que você quer fazer a partir de agora?

Não sei se pelo conforto do acolhimento, essa simples pergunta abriu para mim um mar de possibilidades. Eu fui tomada por uma imensa sensação de alívio. Como se o peso de todos os livros de jurídicos já lidos fossem, finalmente, tirados das minhas costas. Neste instante recobrei a posse do meu livre arbítrio. Essa sensação de plena liberdade de escolha somada à consciência de que eu tinha capacidade de aprender qualquer coisa nova que me propusesse a estudar originaram uma bomba de poderosíssimo efeito psicológico. O poder subiu-me à cabeça. Eu senti com todas as fibras da minha vontade que poderia ser tudo aquilo ou qualquer coisa que quisesse ser. 

Sigo como Alice no País das Maravilhas sem saber ao certo para onde estou indo. Mas excitada com a perspectiva de experimentar. Permitir-me. Escolhi que voltar não é mais uma opção. Poucos são os que sabem da minha decisão, mas estou tão certa dela que esse é o mais eficiente combustível para me impulsionar rumo ao novo.

– Filha?

– Oi Mãe.

– Se me perguntarem o que você vai fazer de agora em diante, o que devo dizer?

– Não diga nada. Ou diga apenas que fui ali ser feliz.

Alice - this is impossible Alice - Only if u believe it is

Sei que há uma grande probabilidade de pensarem que fiquei maluca. Mas, já não ligo. Mais maluco é quem não tem discernimento o suficiente para seguir aquilo que lhe vai no coração. Tenho pra mim que a maluquez pode ser medida de acordo com o desvio do padrão esperado. Eu quero me desviar muito do padrão. Como Neruda, quero poder chegar ao crepúsculo da minha vida na terra confessando que vivi. Sinto que estar fora de si é aceitar não colocar sua presença mais autêntica e integral no momento presente. Jamais me senti tão lúcida.

Decidi não ser escrava dos meus diplomas, nem das minhas escolhas passadas. Decidi não sentir culpa por ter gasto tempo e recursos que podem não mais voltar. Se eu morresse, ou se ficasse incapacitada, ou doente, amanhã de nada me valeriam do mesmo jeito. Só que estou viva e cheia de saúde e com vontade de viver de forma plena. E isso faz toda a diferença. Nas minhas gavetas também não dobro arrependimentos. Esse acúmulo de conhecimento me permitiu acesso a todas as ferramentas que me ajudam a criar novas possibilidades, a descobrir novos caminhos…

Hoje acredito que quanto mais bagagem eu carregar contendo vivência e conhecimento, mais tenho capacidade de aprendizado e, consequentemente, mais tenho liberdade para ir para onde quiser. Ser quem eu quiser. Libertei-me dos grilhões que escravizam nosso saber e conhecimento adquiridos às convenções e padrões socialmente aceitos.

Decidi, enfim, que quando eu crescer eu quero mesmo é ser bem grande.

Quero ser grande o bastante para aprender muito, ensinar pra muita gente. Quero ser tão grande quanto a minha coragem de enfrentar todos os preconceitos e crenças limitantes – sejam elas de minha própria autoria ou não. Quero ser grande para caramba e assim abrigar dentro do meu peito toda a paz necessária para que meus pensamentos não me perturbem. Quero ser grande para dar guarida a um coração de tamanho proporcional e habilitado a amar incondicionalmente. Do mesmo jeitinho que mamãe me ensinou ser possível.

Quero ser verdadeiramente grande e assim ter tamanho o suficiente para sonhar todos os sonhos grandiosos que tenho para o futuro.

[1] “O mais belo fruto da justiça é a paz da alma”. Epicuro de Samos, filósofo grego (341-270 a.C.)

[2] Não por acaso, esse livro sempre foi dos meus favoritos quando criança. E nunca deixou de sê-lo, tanto que de tempos em tempos dou uma olhada nele. Dentre os inúmeros diálogos e passagens cheias de simbolismo e significado, gosto muito desta aqui :

Alice:”Você pode me ajudar?”

Gato: “Sim, pois não.”

Alice:”Para onde vai essa estrada?”

Gato:”Para onde você quer ir?”

Alice:”Eu não sei, estou perdida.”

Gato: “Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve.”

(Alice no País das Maravilhas, 1865)

Um comentário sobre “♔ O Quê Você Quer Ser Quando Crescer?

  1. safetoto disse:

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