“E se depois de tanto mimo
que o atraia, ele se sente
pobre, sem paz e sem arrimo,
alma vazia, amargamente?
Não é feliz.
Mas que fazer
para consolo desta criança?
Como em seu íntimo acender
uma fagulha de confiança?
Eis que acode meu coração
e oferece, como uma flor,
a doçura desta lição:
dar a meu filho meu amor.
Pois o amor resgata a pobreza,
vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria”
(Carlos Drummond de Andrade, Farewell)
Quando foi a última vez que você brincou? Não, não me refiro a ironias, sarcasmos, gozações ou tiradas de duplo sentido.
Quando foi a última vez que você se percebeu criança outra vez? Não, não me refiro a surtos de imaturidade e nem a xiliques de um ego esperneante que não consegue o que quer.
Quando foi a última vez que você gargalhou com vontade, dançou sem se preocupar se os movimentos estavam harmoniosos, correu por aí só porque teve vontade – sem tênis, sem frequencímetro -, pulou de pura alegria, disse coisas sem sentido pelo simples prazer de se divertir com o som das palavras?
Todo mundo é muito “adulto”, até que se coloca um livro de colorir na frente. Quem não se intimida em admitir que se rendeu à moda e ao apelo lúdico da folha bem desenhada e dos lápis de cor, confessa ter experimentado relaxamento, foco, concentração, entrega e prazer ao colorir. Flow. Um conceito usado pelos adeptos da psicologia positiva para designar aqueles momentos em que a pessoa está totalmente absorvida no que faz que não vê o tempo passar. Na brincadeira polícia-e-ladrão, o Flow seria o ladrão e as obrigações a polícia.
Assisti recentemente ao filme “Tarja Branca – A Revolução que faltava”[1] e me deliciei com este sensível e delicado documentário. Um verdadeiro manifesto pelo direito de brincar. Das crianças e dos adultos.
Quando era criança lembro-me de me sentar no colo do meu avô e viajar pra bem longe enquanto ele citava de cabeça versos de cordel[2]. A gente ria muito e ele me dizia: “Tica, vou colocar uma pedra na cabeça prá você não crescer”.
Talvez porque ele soubesse o que estava por vir com o passar dos anos. Talvez do alto da experiência que a idade lhe proporcionou, ele tinha a percepção de que quando crianças somos inteiros. Mais autênticos. Sem freios. Sem fragmentação do nosso eu em diversas personas criadas para nos esconder, nos preservar, nos preparar para encarar o mundo. Sem aquela necessidade irracional de proteção do ego. Como é mencionado em um dos depoimentos do filme, a necessidade de sobrevivência no mundo, para que nos encaixemos nas convenções da grande engrenagem, sufoca a nossa criança anterior: “Chega de bagunça!”, “Vamos botar ordem na casa!”, “Você tá de brincadeira comigo?!”, “Eu não vim aqui pra brincar!”.
Desde quando brincar é mau? Quando foi que se instituiu que brincar é algo negativo? Talvez tenha vindo do racional de quem brinca, não trabalha. Se não há trabalho, não há dinheiro. Quem vai consumir? Nosso sistema de crenças marginalizou o ócio. Brincar passou a ser um risco ao funcionamento da sociedade. Alimentar sonhos é perigoso, desestabiliza o status quo. Foi preciso criar a automação da necessidade de trabalhar, associada à idéia de quem consome mais é mais feliz, mais inteiro, mais realizado. Será mesmo?
A prática mostra que não. Trabalhamos mais, compramos mais e nem por isso somos mais felizes. Começamos a semana, ansiando pelo seu fim. Queremos ócio e recriminamos aqueles que gozam de tempo livre. Quando foi que ficamos loucos e incoerentes?
Ainda tenho dificuldade em encontrar respostas. Mas desconfio que o fio da meada esteja no lugar comum do equilíbrio. O que me ajuda é organizar meu tempo e hoje gastá-lo com mais qualidade. Ser produtiva e preservar momentos de ócio. Quando estou ociosa sou mais criativa, mais leve e liberta. Meu humor melhora também. O humor corrompe minhas velhas crenças, me encoraja a ser mais desobediente e transgressora. E esse comportamento subversivo vicia.
Olhando pelo retrovisor, identifico que estar sentada na frente de um computador dentro de um escritório nem sempre significou eficiência e produtividade. Lembrando da minha antiga rotina corporativa, digo sem vergonha alguma, de que estava ali cem por cento só durante uma parte do dia. No tempo que sobrava eu estava divagando sobre o que fazer no fim de semana, nas férias, depois do expediente… Tinha dias que eu chegava querendo ir em embora. Às vezes meu corpo ia trabalhar, mas minha cabeça não.
Mas será que realmente precisa ser assim? Será que não é possível ter uma rotina com mais tempo livre? Hoje acredito que trabalhar não precisa ser um fim em si mesmo. Acredito que existe uma terceira via. Brincar resgata o meu lado sonhador e ajuda a transpor a distância que existe entre onde estou hoje e o lugar em que gostaria de chegar.
Minha geração cresceu com essa mentalidade de que é preciso se ocupar. Fazia natação, aula de inglês. Duas vezes por semana. E só. A escola, a natação, as aulas de inglês eram obrigações. A lição de casa às vezes tinha que esperar. Brincar é que era urgente! Ainda assim, penso que brinquei menos que a geração meus pais. Hoje desconfio que as crianças brincam ainda menos. E ouso questionar se elas sabem brincar. Tenho a impressão de que brincadeira anda escondida em algum lugar entre a televisão e o tablet.
As crianças de hoje não brincam mais de casinha, comidinha. De fundar reinos e esconderijos. Os adultos não têm mais tempo de ensinar. Eu acredito piamente que brincar nos torna mais inteligentes. Criar mundos paralelos, dar asas à imaginação, é uma necessidade biológica. Cada brincadeira ajuda a expandir a consciência, criar novas realidades. Realidades mais felizes. Ninguém brinca de imaginar desastres, acidentes. Ninguém brinca de imaginar quando será o próximo assalto, ou quando alguém irá nos passar a perna. O não-brincar é restringir nossas possibilidades de sermos felizes. De não levarmos a vida tão a sério. Brincar permite mais liberdade, de tempo, espaço e criação. É a linguagem do espontâneo. Quando brincamos é a alma quem fala.
Uma boa risada oxigena corpo por horas. Um sorriso é capaz de iluminar um dia inteiro. Então, que tal recuperar a brincadeira no cotidiano?
No fundo todos nós sabemos e gostamos de brincar. No fundo, sabemos do que gostamos de fazer. Mas às vezes precisamos de maturidade e coragem para nos permitir.
(♔LAML)
[1] Assista ao trailer do filme clicando neste link: https://www.youtube.com/watch?v=dadvMzBqIdI
[2] http://mundocordel.com