♔ Il Pentimento

Desde criança gosto de brincar com palavras. Além da função lúdica, elas também são para mim ferramentas, da forma escrita ou falada, que me ajudam a processar aquilo que me atrapalha as ideias, que cutuca o coração. Daí a mania de gostar também de dicionários para desvendar-lhes os significados.

Em especial, gosto daquelas que detêm o poder de reunir um monte de significados em um conceito só: Saudades, Crise, Solidão, Lar, Problema… Não demorou muito para que eu também ficasse curiosa de saber se as outras línguas também teriam palavras assim. Um dia encuquei que tinha de aprender italiano. Com pouco tempo de convivência, logo fui apresentada a um bello ragazzo do meu novo vocabulário: Il pentimento.

Il pentimento foi-me exposto como tradução de arrependimento por agir ou deixar de agir. Pentimento também poderia servir para designar o conceito bíblico de castigo e expiação para aqueles atormentados pelo remorso. No mundo jurídico, cumprimento espontâneo da pena. Significava ainda o ato de mudar de opinião, reconsiderar, voltar atrás. Mas como tudo o que é especial, os atributos daquela palavra estavam distribuídos em camadas e para esgotar-lhe os significados foi preciso merecer a descoberta daquilo que estava guardado para além da superfície.

Isso só foi possível algum tempo depois, quando tive vontade de viver um pouco daquela língua e fui passar uma temporada na Itália. Em uma de minhas explorações, enquanto tentava interpretar os sinais de um quadro fúnebre de Caravaggio, exposto na Santa Maria Del Popolo, fui surpreendida pela abordagem de um senhorzinho não apenas simpático e estudioso da obra daquele pintor, mas também apaixonado pelo Brasil. Enquanto ele explicava-me o porquê de tanto contraste de luz e sombra, em dialeto napolitano – e, portanto, de difícil compreensão – fui tocada por uma palavrinha familiar. Foi um encontro casual entre il pentimento e io. Dessa e pela primeira vez, em solo romano.

Talvez pela espontaneidade do encontro surpresa, na ocasião revelamos aquilo que mesmo sem querer também somos. Eu, uma combinação confusa de jovem turista deslumbrada com estudante de direito em crise. Ele, uma palavra de significado melancólico e subjetivo, que em seu tempo livre era também empregada, no mundo das artes, para designar traços rascunhados do esboço, encobertos pelas tintas da versão final de um quadro. Na qualidade de entendido, aquele senhor me mostrou que o passar do tempo fazia com que a tinta deixasse transparecer as linhas da composição original, sobre qual o pintor trabalhara para chegar àquela obra prima. Explicou-me ainda, que conseguir identificar pentimentos era raro, já que na maior parte das vezes este lastro não é visível a olho nu e só pode ser descoberto pelo uso do raio-x dos marchands ou restauradores, para atestar ou resgatar a autenticidade da obra.

No caminho de volta para o apartamento, fiquei pensando a respeito destes desenhos primários que o artista rejeitou ao encobri-los com tinta. Significaria, então, criações que apesar de indeléveis, foram descartadas aos olhos do mundo? Sim. Mas, fato é que visíveis ou não, i pentimenti eram partes constitutivas do quadro, responsáveis, inclusive, para garantir-lhe valor. Trazer esse significado para a minha realidade foi inevitável. Essa palavra foi incorporada, não só ao vocabulário, mas às minhas reflexões. Pentimento passou a nomear as experiências e projetos dos quais desisto, por ação ou omissão, mas que nem por isso, deixam de ser partes constitutivas da minha vida.

Foi assim então, que nesta vidinha minha de não artista, ganharam nome os restos do passado que apesar de escondidos, por um esquecimento breve, por comportamentos racionalizados ou até mesmo pelo sorriso preso ao rosto por força do hábito, não são apagáveis e insistem em transparecer no meu presente como potencialidades não realizadas. Fatos que mesmo não consumados fazem parte da minha história e construíram o que eu sou.

Tenho a impressão de que depois que algo ganha nome, ganha também identidade, importância e frequência nos pensamentos. Passei a reconhecer no meu passado histórias em que estava unida a eventos ou pessoas apenas por força do pentimento. Recordei-me de relações em que eu e o outro éramos, simplesmente, pentimentos recíprocos: nada além de uma lembrança doce, de que outro destino teria sido possível.

Se a vida é composta de escolhas e não-escolhas, ouso concluir que a minha tem mais das segundas que das primeiras. É abarrotada de exemplos de caminhos que por um motivo, ou por outro, deixei de seguir. Meu estoque próprio de pentimentosencobertos. Em geral, são histórias que não se realizaram por falta de coragem, de insistência, pela incapacidade de renunciar ao que, em dado momento, era necessário ser abdicado para que outras tivessem chance. Sonhos, pessoas e projetos adiados e não retomados por causa da minha recusa pueril em aceitar que nada se realiza sem perdas.

Se a palavra e seus significados são interessantes para fins de autoanálise, na prática, viver, ou melhor, reviver um pentimentomostrou-se arriscado. Descobri que um pentimento mal processado tem potencial para esvaziar o presente. De que adianta qualquer escolha atual, se a recordação do passado não realizado parece mais bonita do que aquilo que de fato aconteceu? É covardia comparar o presente cheio de  ansiedades, desencontros e imperfeições, com miragens da felicidade que teria sido possível se outra escolha fosse feita. Nenhuma realidade se apresentará tão florida quanto a bela ilusão plantada para camuflar o arrependimento pelo não vivido.

Além dos maus conselhos decorrentes da nostalgia de escolhas passadas alternativas, com capacidade de usurpar as chances presentes, pentimentos também podem ser falsos. São os casos em que a possibilidade de escolha sequer existiu. Explico: pentimentos não são, necessariamente, recíprocos. É o que chamo de pseudo pentimentos. São histórias com um porém. Quem escolheu foi o outro, ou as fatalidades da vida, e não eu. Eu apenas fui obrigada a resignar-me em seguir adiante. Ocorre que, às vezes não sou madura o suficiente para reconhecer que sou incapaz de controlar tudo. Outras vezes, é a memória quem trai, esqueço-me deste detalhe, e me pego sentindo saudades e arrependida do que poderia ter sido e não foi, por circunstâncias alheias à vontade. Uma loucura.

Como é de acontecer, a teoria é fácil e a prática difícil. Apesar da consciência de tudo isso, a verdade é que na falta de histórias bacanas presentes, a tentação de se iludir com um passado inventado é grande, se não automática. Uma espécie de doença psicológica autoimune, na qual a combinação de coração vazio, com pentimento solteiro é receita infalível de desastre.

(♔L.A.M.L.)

70 comentários sobre “♔ Il Pentimento”

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