Foi num carnaval que aprendeu a se vestir de fantasia para não ser engolida pelo mundo.
A primeira lição foi que em fevereiro não só tem carnaval, como o carnaval guarda consigo noventa e seis horas, com o potencial – para quem quiser vivê-las – de substituir o cotidiano maçante do dia-a-dia por momentos extraordinários. O curso foi intensivo. A lição, breve. Suficiente apenas para aprender que a mágica acontece não porque o mundo muda. Não porque as pessoas deixam de ser quem são. Mas porque simplesmente escolhem transformar seu comportamento. Nem que para isso sejam necessárias fantasia e máscara. Nem que por poucos dias.
Chico não se engana quando nos canta que é festa de alegria fugaz. Invariavelmente na quarta-feira, depois que desce o pano, a purpurina vira cinza. E, graças a cinza veio a segunda lição: só depois que acaba, sobra espaço para um novo começo. Aprendeu num carnaval, que a alegria apesar de escorrer pelas mãos não é ilusão, é combustível pra esperança por dias mais felizes.
Noutros carnavais aprendeu que a inversão de papéis faz parte do jogo, como no carnaval, também na vida, temos a oportunidade de sairmos de um jeito diferente do que entramos. Não são só clientes convertem-se em garçons, moças solteiras que ficam noivas em fuga, meninos que se transformam em bailarinas, pessoas que se apimentam, certezas que se transmutam em charadas. Na alegria das alternâncias, do dormir assim e acordar assado, na euforia das reencarnações de quem escolhe viver cada bloco de um jeito, aprendeu a terceira lição: a utilidade das máscaras. Que a negação da identidade única e do sentido único pode ultrapassar o carnaval. Depois de viver a tristeza da primeira quaresma, os esmorecimentos nunca mais são tão intensos.
Por conta dessa lição já consegue encher o peito e falar, “Carnaval, um beijo pra você. Que venha a quaresma, eu já descobri que se eu quiser tenho o poder de me reinventar. Que venham os tempos de abstinência e contenção, já descobri a negação da coincidência estúpida comigo mesma, já descobri que com ou sem máscara tenho o poder das transferências, das metamorfoses, de ultrapassar fronteiras.”
Há vezes em que se esquece das lições. Aí é que um novo carnaval se faz necessário para a relembrança que se pode usar uma fantasia diferente em cada bloco. Uma vez por ano, caso esqueça, há o pretexto para reavivar a possibilidade constante de invenção e reinvenção. Na prática vivenciou que de metamorfose em metamorfose existe a desinvenção. Aprendeu em carnavais passados, que vale a pena não se esquecer de que desinventar-se é não apenas preciso como necessário. Não que desinvenção signifique deixar de carregar aquilo foi vivido, mas sim em dar novos significados a antigas experiências e ter a sabedoria de jogar o que não é nosso, apenas nos foi imposto como fantasia de gosto duvidoso.
E por falar em fantasias de gosto duvidoso, chegou à quarta lição: se criar personagens é preciso, despir-se deles, constantemente, é vital. É bem fácil cair na tentação de transformar uma das máscaras, aquela que nos parece mais eficaz no embate cotidiano, em rosto definitivo. A máscara se torna tão usada que vai se fundindo à pele. Mesmo que não vire ferro, o fato de virar carne já torna difícil de arrancá-la. E se a máscara for mais agradável que o rosto? E se descobrisse que por debaixo da máscara, não há um ou muitos rostos, mas um vazio infinito? Seria a máscara pretexto pra ausência de face? Como seguir depois da festa?
Mas ela tirou a máscara e ainda tava lá. Independentemente da fantasia ou do personagem sua essência estava intacta. Ao revés, o uso das máscaras, possibilitou a descoberta do rosto. Aprendeu que respeitados os valores, as máscaras cumprem seu papel. Têm a função de nos desconstruir tanto aos olhos próprios, como aos olhos dos outros, que cultivam a pretensão de que a gente seja a mesma até o final dos tempos. Esvai-se o peso de permanecer sempre igual.
E, então, era 17 de fevereiro. Foi dormir pensando na decisão tomada: naqueles próximos quatro dias, nos quatro mais mágicos dias de todos os trezentos e sessenta e cinco que completam o ano, queria ser engolida pelo mundo. Queria ser digerida, processada e retornar ao mundo de uma forma diferente. E queria viver esse processo com fantasia e tudo. De máscara e tudo.
E como no carnaval tudo é permitido, inclusive sonhar, pensou que poderia ouvir na quarta feira de cinzas: “Pronto, garota, você já fez o seu show. Agora, por favor, tire a máscara para eu ver seu sorriso e me dê sua mão.”
(♔L.A.M.L.)