Eu não sou o tipo de pessoa que se lembra de sonhos. Na verdade, nas poucas vezes em que me lembro de que sonhei, a recordação quanto ao que foi sonhado é sempre vaga e pincelada de achismos. São lembranças permeadas pelos detalhes que crio pra preencher os vazios que a memória foi incapaz de registrar. No final das contas, há tanta coisa inventada que fico sem saber onde começa o sonho, verdadeiramente sonhado, e onde terminam minhas invencionices.
Esse foi diferente. Talvez porque não tenha sido um sonho. Talvez por se tratar de um encontro. Desses encontros raros, que acontecem na vida da gente com a mesma frequência em que os cometas registram sua passagem pela terra. Apenas por isso justifica-se tentar reconstruí-lo, ainda que com imprecisão.
Estava numa casa. O cômodo era do tipo onde a gente coloca o sofá em que não se senta, os livros que não se lê, os discos que não se ouve, os sentimentos que não são sentidos. Enfim, o quarto onde se jogam todas as tralhas que sabemos que jamais serão usadas, e nas quais pensamos que um dia, por algum motivo qualquer, nos farão falta. Alheio às constatações, tão inúteis quanto o conteúdo do recinto, um Menino de pijamas estava de costas, olhando através da janela.
Ao ouvir meus passos ele se virou, e sorriu. Sem dizer uma palavra, o Menino veio na minha direção, pegou minha mão como que me convidando a compartilhar com ele a visão da janela.
Através da janela avistava-se o quintal aos fundos de uma casa. Uma mulher muito barriguda cantarolava uma bossa qualquer, enquanto regava as plantas. Um homem sorridente, recém chegado de algum lugar, a abraçava. Mesmo de longe, consegui identificar que os lábios dela abriam e fechavam como quem diz estou-com-saudades, ao que os dele nem abriam nem fechavam: permaneciam parados na forma de sorriso. As feições eram de pessoas indefectíveis, e por algum motivo aqueles dois me enterneceram. Parece que ao Menino também, porque ele apertou mais forte a minha mão. Nos olhamos.
Seu olhar carregava a combinação da sabedoria de quem já existiu muitas vezes, com o encantamento de alguém que vê pela primeira vez as coisas do mundo.
Não sei se porque ele não sabia, ou se falar em sonhos é coisa dispensável, naquela ocasião conversamos em pensamento. Na minha percepção, nossa tagarelice durou quase uma noite inteira de sono. Talvez tenha durado muito menos que isso. Sei lá. Em dado momento ele contou-me que quando conversava com outros pequenos que estavam prestes a ganhar a passagem de ida pra uma aventura na terra, eles diziam que pouco antes da viagem, recebiam mensagens das pessoas que iriam recebê-los. Mensagens de boas vindas. Mensagens desejando saúde. Mensagens de amor… De repente ele parou. Fixou aqueles olhinhos em mim e perguntou:
– Se você me mandasse uma mensagem, escreveria o quê? O que você me desejaria antes de eu embarcar?
Fui pega de surpresa. Eu sequer o conhecia. Não sabia de onde era, e se é que iria viajar pra algum lugar, não fazia ideia para onde ele iria. Há na terra tantas moradas. O que é que se pode desejar para um rapazinho nessas condições?! Ele não tirava os olhos de mim. Enquanto o fitava senti um calor no meu peito. Um carinho instantâneo tocou meu coração. Dei-me conta de que pouco importava quem ele era ou, se voltaria a encontrá-lo em outros sonhos. Para ele eu teria de dedicar amor do tipo ó negativo. Ele merecia a melhor mensagem que eu tivesse condições de transmitir.
– Veja, eu poderia te mandar uma mensagem com todas essas coisas também, só que elas me parecem receitas prontas. Não gosto de receitas prontas, porque elas quase nunca funcionam com quem as testa pela primeira vez e isso é altamente decepcionante. Queria poder lhe dar conselhos. Um manual para o que há vir, mas, como você pode perceber, eu também não tenho muita experiência na vida. Estou ainda aprendendo um monte de coisas. Às vezes é alguém quem me ensina, em trocas como essa que estamos tentando agora, às vezes a lição é tomada sozinha porque não tem outro jeito senão experimentando mesmo, sabe? Quando dá certo, a gente aprende como, quando e com quem certas coisas valem a pena ser vividas e, quando dá errado fica a lição do que deve ser evitado… E entre uma coisa e outra moram as dúvidas, os questionamentos e as indecisões. É por isso, Menino, que a única coisa que eu te desejo de todo coração é que você tenha gosto pela vida.
Se a sua viagem for pra terra onde eu vivo, você verá que há momentos em que as coisas dão certo, está tudo bem, as pessoas de quem você gosta também gostam de você e, isso tudo te deixará feliz. Ocorre que nem sempre será assim. Aliás, esses momentos, para a maioria das pessoas que eu conheço, são raros. Logo cedo, você aprenderá que as coisas não acontecem exatamente da forma como você gostaria que acontecessem. Você ficará muito triste com isso.
Ele me olhou com decepção. Achei que fosse chorar. Contrariando minha preconceituosa expectativa, ele respirou fundo, como fazem os rapazinhos valentes, maneou a cabeça dando aval para eu prosseguir.
– Não quero te desanimar, quero apenas te contar que não será possível ser feliz sempre, e que isso não é o fim do mundo. Nos momentos em que as coisas não dão certo, também se ganha. Você aprende a ser alguém mais forte. Nessas horas, o prêmio de consolação é o direito de saber quem realmente se importa com você, mesmo quando você não é, bem exatamente, o que chamamos de boa companhia. Você aprende o que é ser amado e a força que isso tem para nos encorajar.
Por isso, Menino, é que eu desejo que você tenha vontade de viver. Não vou lhe desejar amor, porque amor não se deseja. Laços de amor são construídos com a convivência. Não vou lhe desejar felicidade, porque a felicidade passa. Não vou lhe desejar boa sorte, porque nem sempre ela estará com você e isso não pode ser motivo para você desistir. Eu quero que você tenha a liberdade de sentir todos os sentimentos que são normais da vida: alegria, tristeza, ternura, frustração, saudades, arrependimento, raiva. Quero que mesmo quando eles não forem bons, você não se sinta mal por senti-los, porque terá, por outro lado, a tranquilidade de saber que todos eles, são naturais e fazem parte de um aprendizado maior. Aprender a lidar com todos esses sentimentos, sem perder a vontade de seguir em frente, talvez seja um jeito de se tornar alguém melhor, para si mesmo e para os outros.
Ele apertou minha mão, dando o claro sinal de que era para eu parar de falar. De novo me perguntou:
– Pra você às vezes é difícil continuar vivendo? Você tem vontade de voltar para o lugar de onde veio?
Travei. A resposta era sim. Sim para as duas perguntas. Só que eu simplesmente não podia dizer isso para alguém que ainda teria de enfrentar uma infinidade de experiências pela frente. Queria ser realista, sem ser amarga. Queria transmitir-lhe esperança não convertível em ilusão. Foi minha vez de respirar fundo:
– Viver não é fácil. Mas ainda assim, eu continuo. Às vezes a contragosto. Aí eu me lembro das pessoas bacanas que já passaram e que permanecem na minha vida, lembro que elas também sentem que é difícil e que nem por isso desistem da jornada. Isso dá força, sabe?E quando me sinto cansada de verdade, quando eu fico com muita preguiça, tento resgatar a curiosidade imensa que eu tenho de saber o que vai me acontecer, das pessoas que ainda encontrarei, dos lugares que irei conhecer. Na gana de saciar essa curiosidade, de responder aos enigmas da vida, que encontro motivos pra achar que ainda é cedo pra voltar. É como se faltassem poucas peças pra fechar um quebra-cabeça e alguém me dissesse que elas são o tudo que eu ainda vou encontrar, conhecer e experimentar, mesmo sem saber ao certo, quando, ou onde. Por acreditar que a solução dos enigmas da vida está na própria vida é que eu tenho vontade de continuar vivendo…
Ele não usava relógio. Se usasse, certamente, olharia naquele momento para as horas para sinalizar que era tempo de por fim à conversa.
Não perguntou mais nada. Abraçou-me com a certeza do afeto mútuo e da cumplicidade proporcionada, apesar da brevidade do encontro. E, com aqueles olhinhos encantadores, encarou-me como quem diz até mais.
Acordei me sentindo na história de Saint-Exupéry. Aquele tipinho articulava como gente grande. Um pequeno príncipe mudo e de pijamas. Senti um pouco de remorso. Talvez devesse ter sido menos sincera, precisava ser tão realista com o rapazinho? Senti também um pouco de tristeza. E se meus conselhos o desencorajasse a embarcar na viagem dos pequenos? E se nunca mais nos encontrássemos? Não fosse minha falta de certeza sobre o que de fato foi sonhado e o que fantasiei depois de acordada, poderia afirmar que aquela foi a quimera mais incrível de toda minha vida. Foi tão especial, que na dúvida, embrulhei em papel de seda e guardei no fundo do meu coração pra ninguém mexer.
(…)
Algum tempo se passou e, numa madrugada de maio recebi a notícia de que acabara de ganhar um boneco. Um de mais de três quilos e setecentos gramas. Quando seus olhinhos se abriram e me olharam pela primeira vez, lembrei-me do sonho. Bobagem ou não, nada me tira da cabeça que esse novo componente humano da minha história é o homenzinho daquela noite. A única diferença é que ele tem nome e endereço e ainda não me faz tantas perguntas difíceis. Mas algo me diz que isso é questão de tempo.
(♔L.A.M.L)
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