Ela não volta mais. Não adianta resistir na janela. Ficar esperando de dentro do carro que saia. Apertar o interfone. Mexer as pernas com intranqüilidade, recorrer às paredes, avisar os parentes.
Ela não volta mais. Vai sobrar espaço na mesa, na cama, no banho, no porta-malas do carro. Vai sobrar espaço no seu ouvido. Vão faltar palavras na sua boca.
Ela não volta mais. Pode arrumar a mesa sem os guardanapos, limpar o cinzeiro, dispensar seus livros grifados, seus CDs arranhados.
Ela não volta mais. Voce vai ter que buscar o jornal, tirar o lixo, pagar a empregada, vai cortar a cebola na tábua querendo que fosse a cabeça Dela. Querendo que fosse seus olhos. Perderá as datas de vencimento das contas, as chaves de casa, não vai saber onde está o tylenol.
Ela não volta mais. Chega do susto de adivinhar suas idéias, de seu desespero em contar as novidades, de tropeçar nos seus sapatos espalhados pela casa.
Ela não volta mais. Acabaram-se os jogos, apostas e brigas. Pode procurar outra parceira. O calendário permanecerá na mesma folha de setembro, não chegará mais atrasada, não chegará mais. A garrafa de vinho restara à toa. A chuva será sua água com gás.
Ela não volta mais. Te restará comprar tudo em dobro: o amor, o xampu, os sabonetes, o pão e o café. Sobrará café na cafeteira. Pagará tudo em dobro para consumir só metade. O prato Dela não vai mais estar lá para medir a distância da sua fome, seus talhares para aproximar a mão. Jantará de lado com a televisão. Fechará a casa com a tranca aberta. Manterá a esperança naquilo que era sua escrivaninha.
Ela não volta mais. Odiará a sala bagunçada, os DVDs desalinhados, a tampa da privada sempre levantada. Sua tosse não o acordará a noite
Ela não volta mais. Logo esquecerá o número dos seus sapatos, sua cor preferida, seu peso, o tamanho dos vestidos. Esquecerá a largura do seu anelar, dos sonhos e dos fracassos
Ela não volta mais. Seu inverno demorará no escuro. Seu verão demorará na luz. Ela não estará esperando à porta. Faltará alguém para elogiar e você não confiará no espelho.
Ela não volta mais. Suas lembranças serão deserdadas, parte das fotos sumirá de repente, as cartas serão rascunhos.
Ela não volta mais. E, você mudará o nome da mãe dela. Passará a chamá-la como filha dessa mulher e dependerá das redes sociais para saber as notícias. Por não insistir, por deixar de amar e por não entender você, será ofendida. Será julgada sem contraditório. Tentará convencer os amigos de sua sentença: que foi desleal, infiel, que não presta. Tomará um porre pra chorar e a verdade será maior que sua vontade de mentir.
Ela não volta mais. Tentará prever com quem anda, com quem sai, com quem dança, com quem finge. Voltará a sentir medo do silêncio, dos versos, das músicas. Amará em troca de nudez. Terá soluços por engolir a dor e, só com água potável não engolirá sua nova vida.
Não adianta pedidos de desculpa, simulação de arrependimento, fingir remorso. Teatro amador é na escola. Ela quer vida real.
(…)
E um dia, ele a compreendeu. Concluiu ao fim que duas carências somadas apenas geram uma terceira. Amores não se complementam, se bastam.
(♔L.A.M.L.)